domingo, maio 20, 2007

O mito em aberto

Cartola, o filme, tinha tudo para ser talvez o longa-metragem de autores pernambucanos mais linear e, dado o respeito que tem o protagonista, uma unanimidade. Entretanto, tem gerado mais polêmica do que poderia se esperar, com o público dividido sobre haver ou não gostado do que viu na tela. Com base no trabalho, na repercussão que ele tem tido e em alguns depoimentos dos autores - Lírio Ferreira e Hilton Lacerda -, acredito que estes pagaram para ver o que aconteceria se fizessem uma obra fora do padrão sobre um personagem idem, porém, em sua condição de mito, intocável.
A principal questão passa por contar a história de Cartola sem contar sua história. O filme é meio um quebra-cabeça que relata fatos da história do cantor e compositor, e o espectador vai montando o perfil conforme seu próprio repertório. Os menos iniciados na Sétima Arte - e em Cartola - certamente estranham a passagem escura, que simboliza o hiato na vida do artista. As imagens de arquivo também estão longe da primazia pela forma, entretanto, sobressai pelo conteúdo.
Estamos nos acostumando (ainda bem) a ver documentários impecáveis no trato da imagem e do som, porém, não estamos em Hollywood, onde a tecnologia de ponta é capaz de recuperar milagrosamente arquivos deteriorados. E quer saber? Esteticamente, o que há de imagens ruins em Cartola combinam com a narrativa que retrata não apenas a vida de altos e baixos do artista, como um Brasil não menos irregular, tomado por golpes, de contrastes entre riquezas naturais e um morro que todo o mundo hoje diz que precisa ser respeitado como tal, com deficiências, mas que, lá nos anos 60, Carlinhos Lyra & Guarnieri já diziam com propriedade: “Feio não é bonito/ o morro existe, mas pede pra se acabar”.
Para um autor, a obra vai além de seu propósito quando ela provoca discussão, incita o debate. Cartola, o filme, a exemplo de seu protagonista, tem esse dom.